O problema da ausência de dados oficiais sobre desigualdades digitais

O artigo é uma transcrição adaptada da aula “Lei de Acesso à Informação, Desigualdades Digitais e de Raça” do prof. Paulo Victor Melo para o Ciclo Formativo – Antirracismo e Políticas na Inteligência Artificial e TICs.

Para falarmos da importância de dados oficiais e impactos de sua ausência na negação do racismo enquanto um mecanismo de estruturação das nossas relações sociais, econômicas e políticas, podemos começar falando sobre o Censo Demográfico do IBGE. Por que o Censo do IBGE? Porque é a principal base de dados sobre a população brasileira e porque as informações do Censo são imprescindíveis para a definição de políticas públicas, para a tomada de decisões, para o Estado identificar prioridades da sua atuação.

Primeiro, algumas pistas históricas sobre a relação do Censo com as informações sobre a questão racial no Brasil. O primeiro recenseamento do país aconteceu em 1872, ainda durante o regime escravista. Naquele momento, as pessoas escravizadas não eram responsáveis pelas próprias informações sobre si, eram os escravocratas que definiam, por exemplo, qual era a cor das pessoas escravizadas. E estima-se que naquele recenseamento de 1872, apenas 15% das pessoas submetidas à escravidão naquele período no Brasil foram contabilizadas. Já podemos pensar em uma pergunta: essa ausência de dados não foi também um instrumento para o abandono institucional dos negros e negras logo após a assinatura da Lei Áurea?

Em 1880, não houve Censo. Em 1890, a categoria parda foi substituída pela categoria mestiça. E essa categoria mestiça, de acordo com o Censo de 1890, equivalia a 32,4% da população brasileira. Outra pergunta: não será que esse dado de mestiços e mestiças, como 32% da população, não seria uma validação estatística das teses de branqueamento e do apagamento da população negra? Depois disso, o que vemos depois do Censo de 1890 é um período de apagão de dados sobre a questão racial. Isso porque dois censos seguintes, o de 1900 e o de 1920, não incluíram a questão cor/raça. E em 1910 e 1930, não houve censo. Isso significa que nas três primeiras décadas do século XX não foram produzidos dados oficiais sobre a composição racial da população brasileira.

Apenas no Censo de 1940, a questão sobre composição racial volta. Aí também foi incluída a categoria amarela, especialmente para dar conta da imigração japonesa do início do século. No de 1970, já na ditadura militar, não houve investigação de cor/raça, que voltou no de 1980, mas não inclusa no questionário básico.

Vale um parênteses: a partir de 1960, passaram a ser dois questionários no Censo: um básico, que reunia informações preenchidas por todas as pessoas que eram recenseadas, e um mais amplo. A questão cor/raça não foi incluída no questionário básico. Ou seja, nem todos os respondentes em 1980 precisavam dizer qual era a sua cor ou raça. No Censo de 1991, a categoria indígena, que antes estava separada, passou a ser incluída no quesito cor/raça, o que foi mantido no Censo de 2000. E somente no Censo de 2010, o quesito cor/raça voltou ao questionário básico, que foi o primeiro Censo também em que as pessoas indígenas puderam responder sobre etnia e sobre línguas faladas nos seus territórios.

É somente no Censo atual, 135 anos após a Lei Áurea, 150 anos após o primeiro recenseamento do país, que nós vamos ter, por exemplo, informações sobre os territórios quilombolas. E nós sabemos bem toda a batalha política que foi para a realização desta edição do Censo.

Essa breve história, que, obviamente, tem outras camadas para análise, evidencia uma disposição institucional do Estado brasileiro em não produzir informações e dados sobre a questão racial. E a consequência disso é a ideia de que racismo não seria um problema no Brasil. Se não é um problema, não haveria necessidade de atuação do Estado para, por meio de políticas públicas, revertê-lo. Nesse sentido, a ausência de produção de dados sobre a questão racial é mesmo um instrumento bastante poderoso na ocultação do racismo, na naturalização das desigualdades.

Uma manifestação recente dessa naturalização das desigualdades, violências e do apagamento da história foi a disponibilização de jogos que simulam a escravidão em plataformas na internet pela plataforma Google.  O caso expressa a necessidade de produção de informações sobre o que foi o horror da escravidão no Brasil. É um processo que precisa ter identificação, ter informações, ter responsabilizações. Assim como, por exemplo, houve todo um esforço institucional do Estado brasileiro para pensar memória, verdade e justiça no contexto da ditadura militar. Por que nós não temos um processo de memória, verdade e justiça no Brasil também sobre a escravidão? Isso me parece fundamental no sentido de trazer informações sobre as pessoas e grupos que se beneficiaram e lucraram com a exploração de vidas humanas e, ao mesmo tempo, visando a efetiva reparação com grupos e culturas que foram vítimas desse processo.

Paulo Victor Melo é pesquisador do Instituto de Comunicação da Universidade Nova de Lisboa, professor do IADE/Universidade Europeia, no curso de Ciências da Comunicação, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Diretor de Projetos da Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Secretário da Compolítica – Associação Brasileira de Pesquisadores(as) em Comunicação e Política.

Leia mais no texto a seguir: “Por que dados desagregados são importantes