Imagem: Data Processing por Yasmine Boudiaf & LOTI

Regulação de I.A. carece de mecanismos de participação social

O aumento da capacidade da Inteligência Artificial, em sentido amplo, tem sido apontado como uma das revoluções tecnológicas e sociais da contemporaneidade. Ainda que seja um termo amplo e disputado, consensos multissetoriais têm levado o conceito a ser expresso em políticas públicas ou propostas legislativas como “sistema baseado em máquina que, com graus diferentes de autonomia e para objetivos explícitos ou implícitos, infere, a partir de um conjunto de dados ou informações que recebe, como gerar resultados, em especial, previsão, conteúdo, recomendação ou decisão que possa influenciar o ambiente virtual, físico ou real”.

A capacidade disruptiva da tecnologia em gerar efeitos em qualquer esfera da vida humana gera também preocupações para a defesa de direitos e promoção da igualdade. Entre as principais questões já mapeadas estão: concentração econômica e de poder em poucas empresas desenvolvedoras; eliminação ou precarização de empregos; potencial discriminatório quanto a grupos vulnerabilizados, ligados a históricos de opressão racial, de gênero e outras; impactos ambientais devido a demandas energéticas e de recursos naturais; e outros danos de diferentes ordens, inclusive quanto a confiança epistêmica e integridade informacional.

Formuladores de legislação e políticas públicas no Brasil tem discutido a matéria em diferentes espaços, com especial destaque à atual Comissão Temporária de Inteligência Artificial no Senado, presidida pelo senador Carlos Viana e relatada pelo senador Eduardo Gomes e a formulação do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, em desenvolvimento pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. As duas iniciativas prometem impactos para o desenvolvimento, fomento, uso ético e responsável da inteligência artificial.

Com vistas de alcançar o objetivo de estabelecer as bases para que os avanços atuais dessa tecnologia, que tem sido estudada e desenvolvida já há oito décadas, maximizem seus benefícios sociais ligados a geração de emprego e renda, promoção de igualdade, acesso à informação, proteção ao meio ambiente e outros valores sociais centralizando a pessoa humana, nós, da sociedade civil, consideramos que a participação social e popular é absolutamente imprescindível. Consideramos que, se desejamos uma sociedade igualitária, participativa, sustentável, baseada na dignidade humana, com indivíduos livres e emancipados, devemos construir modelos democráticos e configurações institucionais que expressem esse ideal. 

Entretanto, os diferentes ciclos de debate legislativo recentes sobre inteligência artificial não parecem ter alcançado mecanismos sólidos para a participação social. Durante a formulação do PL 2338 pela Comissão de Juristas responsável por subsidiar elaboração de substitutivo sobre inteligência artificial (Fevereiro a Dezembro de 2022), a sociedade civil organizada apontou que sua composição foi marcada pela ausência de juristas negras e negros ou indígenas, como também não levou em conta a representatividade regional ou a representatividade de interesses afetados pelos produtos envolvendo IA. O problema foi parcialmente resolvido pela inclusão de amplo e mais diverso rol de representantes multissetoriais durante as audiências públicas, mas críticas à não-adoção de recomendações da sociedade civil como o banimento do reconhecimento facial também foram apontadas.

Na atual Comissão Temporária de Inteligência Artificial no Senado os problemas de representatividade multissetorial, demográfica ou epistêmica também se fazem presentes e a sociedade civil apontou ainda a “opacidade a respeito dos trâmites e andamentos internos da Comissão, já que, por exemplo, foi publicizada a realização de audiência pública apenas na semana de sua realização, sem a devida transparência e a publicidade – preceitos norteadores na gestão pública sobre os nomes dos participantes e como eles estão sendo escolhidos”.

Acreditamos que tais lacunas trazem malefícios diretos e indiretos à produção legislativa inclusiva e sólida, em diversas camadas da proposição atual. Enfatizaremos aqui em especial o próprio desenho de participação social que consta ainda de forma muito tímida na atual versão do relatório preliminar e estão sob ameaça considerando a não-votação da proposta no último mês de Julho.

A participação social na ideação, desenvolvimento, regulação e controle da inteligência artificial é apontada como essencial por diferentes organismos internacionais e multissetoriais. O documento Recomendação sobre a Ética da Inteligência Artificial (2021), desenvolvido pela UNESCO, estabelece como valor Garantir a Diversidade e Inclusão e recomenda que “ao longo do ciclo de vida dos sistemas de IA, devem ser garantidos respeito, proteção e promoção da diversidade e da inclusão, de acordo com o direito internacional, incluindo as leis relativas a direitos humanos. Isso pode ser feito promovendo a participação ativa de todos os indivíduos ou grupos”.

Em publicação recente do AI Advisory Group da Nações Unidas, Governing AI for Humanity, afirmou-se que “apesar de seu potencial, muitos povos do mundo todo não estão ainda em posição de acessar e usar IA de modo que melhore significativamente suas vidas. Alcançar o potencial da IA e permitir participação ampla em seu desenvolvimento, implementação e uso é crítico para que se possa usá-la para gerar soluções sustentáveis a desafios globais”.

Em especial sobre impacto em grupos vulnerabilizados, a relatoria especial às Nações Unidas intitulada de Racial discrimination and emerging digital technologies: a human rights analysis (2020) estabelece que os mecanismos de avaliação de impacto algorítmico “devem incorporar oportunidades sólidas para co-design e co-implementação com representantes de grupos racialmente ou etnicamente marginalizados. Uma abordagem puramente voluntária a avaliações de impacto algorítmico na igualdade não são suficientes; uma abordagem vinculativa é essencial”.

Assim sendo, nós, da sociedade civil, recomendamos, portanto:

a)   Inclusão explícita de Organizações da Sociedade Civil no Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial (SIA) – A sociedade civil organizada é essencial para garantir os objetivos regulatórios, sancionatórios e normativos da entidade. O desenvolvimento de normas vinculantes ligadas a requisitos e procedimentos para certificação do desenvolvimento e utilização de sistemas de alto risco e procedimentos e requisitos para elaboração da avaliação de impacto algorítmico requerem a participação da sociedade civil organizada e independente dos interesses dos demais setores envolvidos.

b) Inclusão explícita de Organizações da Sociedade Civil no Conselho de Cooperação Regulatória Permanente (CRIA) – Consideramos que a participação da sociedade civil no CRIA é essencial para reforçar o caráter democrático do conselho, em especial em sua capacidade de identificar impactos conhecidos e previsíveis no direito ao trabalho e emprego, impactos ambientais e discriminação negativa colaborando com as trocas positivas na relação multissetorial.

c)   Multidisciplinaridade no Comitê de Especialistas e Cientistas de Inteligência Artificial/CECIA – Considerando o impacto da Inteligência Artificial em todas esferas da vida, conclui-se que o CECIA deve também refletir essa ubiquidade, incluindo representação de especialistas e cientistas das áreas das Ciências Humanas, Sociais e Artísticas.

d) Compromisso com a multissetorialidade e multidisciplinaridade nos debates legislativos. Por fim, recomendamos aos legisladores um compromisso de escuta ativa e inclusão da sociedade civil em modos que representem plenamente a multissetorialidade e multidisciplinaridade necessárias.

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