Por que dados desagregados sobre desigualdades são importantes

Sempre que lemos pesquisas quantitativas, me parece fundamental perguntarmos quem são as pessoas por trás dos dados. Considerando que as pessoas não são números, estamos falando de vidas, de famílias, de histórias. Então, é importante sempre questionar: esses dados estão falando sobre quem? Já no início da pandemia, a Organização Pan-Americana de Saúde divulgou um documento ressaltando a importância dos dados desagregados para um melhor enfrentamento ao coronavírus. A OPAS enfatizou uma série de benefícios proporcionados pela produção de dados desagregados, como análise acurada da situação de saúde, melhor entendimento das características específicas de uma população, detecção de problemas, identificação de padrões de necessidades, monitoramento da equidade, estruturas e planos de financiamento, dentre outros.

E essa produção de dados desagregados precisa atender a alguns princípios fundamentais. A iniciativa Parceria Global Para Dados de Desenvolvimento Sustentável indica cinco desses princípios:

O primeiro é de que todas as populações devem ser incluídas nos dados.

O segundo é que todos os dados devem, sempre que possível, ser desagregados para descrever, com precisão, todas as populações.

O terceiro princípio é de que os dados devem ser obtidos de todas as fontes disponíveis, e não apenas das fontes oficiais, por exemplo.

O quarto princípio é que os responsáveis pela coleta de dados e produção de estatísticas devem prestar contas. Afinal, esse é um trabalho de natureza pública.

E o quinto princípio é de que a capacidade humana e técnica para coletar, analisar e usar os dados desagregados deve ser constantemente melhorada, inclusive por meio de um financiamento adequado e sustentável.

Pensando os dados sobre acesso digital no Brasil, por exemplo, e a questão dos dados desagregados, podemos lembrar da pesquisa TIC Domicílios. Foi somente em 2019 que os dados de acesso à internet e as TICs por cor/raça foram apresentados nesse levantamento. Vale frisar: estamos falando de uma pesquisa que é feita desde 2005, e apenas na edição de 2019, quase quinze anos depois, apareceram publicamente os dados de acesso por cor/raça. Então, a pesquisa deste ano permitiu, por exemplo, sabermos que, dentre os 36 milhões de brasileiros e brasileiras que não possuem acesso à internet, 21 milhões são pessoas pretas e pardas e 19 milhões estão nas classes D e E.

Não é possível, por exemplo, a partir dos gráficos divulgados visualizar o cruzamento sobre a questão racial e de classe socioeconômica. Para isso é necessária uma análise debruçada nos microdados da pesquisa. Ou seja, dos 36 milhões de brasileiros e brasileiras sem acesso à internet, quantos desses são pretos e pardos e estão nas classes D e E? Essa e outras pesquisas demonstram que as desigualdades digitais são também desigualdades raciais. Mas isso também nos demonstra que as políticas públicas de acesso digital num país como o Brasil não podem prescindir de ações afirmativas que priorizem as pessoas negras e pobres. Ou seja, se é para priorizar algo em relação ao acesso digital, o Estado brasileiro, no meu entender, precisa, e os dados demonstram isso, colocar as questões raciais e de classe em primeiro plano.

Os dados desagregados são também um instrumento político para evidenciar o abismo entre a aparência e a essência da ação governamental. Por exemplo, na imagem acima as imagens das primeiras pessoas vacinadas contra a COVID-19, nos quatro estados da região sudeste: São Paulo, Rio, Espírito Santo e Minas Gerais. O que temos em comum é que as primeiras mulheres vacinadas contra a COVID-19 nesses estados foram mulheres negras e foram mulheres negras colocadas ao lado de governadores brancos. Apenas no Rio de Janeiro não aparece o governador, mas aparece essa imagem, tão simbólica, do Rio de Janeiro.

Em trabalho que desenvolvi com Ivonete Lopes e Daniela Leal, da Universidade Federal de Viçosa, identificamos que, à época do início da vacinação no Brasil, dentre os quatro estados da região sudeste, apenas Minas Gerais e Espírito Santo divulgavam, nos seus boletins epidemiológicos, informação sobre pertencimento racial. Fizemos um trabalho de reunir e sistematizar boletins epidemiológicos de todos os governos estaduais/secretarias estaduais de saúde. Da região Sudeste, apenas Minas Gerais e Espírito Santo informavam, por exemplo, dentre as pessoas contaminadas e que vieram a óbito, quantas eram negras. E só o Espírito Santo trazia estatísticas que cruzavam gênero e raça. Aí, para mim, está a essência. Ou seja, se na foto ficou bem colocar mulheres negras como primeiras pessoas vacinadas, o mesmo não podemos dizer dos boletins epidemiológicos, já que não sabíamos, por exemplo, quantas mulheres negras haviam sido contaminadas e mortas.

Nesse estudo que realizamos, nos boletins epidemiológicos de abril de 2021 dos 26 estados e do Distrito Federal, 63% não informavam sobre o perfil étnico-racial dos contaminados e das pessoas que morreram. E 85% não desagregavam as estatísticas por raça e gênero. Na contramão dessa tendência, só Amazonas, Acre, Roraima e Espírito Santo.  

Então estamos falando tanto de uma negação da questão racial nos dados e estatísticas quanto, por outro lado, de uma apropriação da questão racial como jogo de marketing, visando aí conferir visibilidade política e social a governos que se afirmavam alinhados com a ciência e também com a própria questão racial. Mas apenas se afirmavam.

Bem, se os boletins epidemiológicos são suficientes para permitir esse tipo de conclusão, a Lei de Acesso à Informação apresenta possibilidades ainda mais relevantes. Primeiro, eu preciso dizer que o direito de acesso à informação é uma condição fundamental para a democracia e para o exercício da cidadania. É um direito que está consagrado em diversos marcos normativos internacionais e que está previsto no inciso 14 do artigo 5º da nossa Constituição, em que é assegurado a todos e todas o acesso à informação.

E pensar o acesso à informação significa pensá-lo em três camadas. A primeira é o direito de informar, que está relacionado com a liberdade de transmitir e comunicar informações. A segunda camada é o direito de se informar, relativo à liberdade de pesquisar e de buscar informações. E a terceira é o direito de ser informado, que tem a ver com a obrigação do Estado de transmitir informações aos indivíduos e de prestar contas das suas atividades. A Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação) é, portanto, a materialização do inciso 14 do artigo 5º da Constituição e representa uma conquista democrática de conferir à cidadania o poder de fiscalização sobre a administração pública. Neste sentido, utilizar a LAI para requerer informações desagregadas é uma importante alternativa frente à insistência histórica do Estado brasileiro em negar a produção e divulgação de dados que cruzem diferentes marcadores.

Paulo Victor Melo é pesquisador do Instituto de Comunicação da Universidade Nova de Lisboa, professor do IADE/Universidade Europeia, no curso de Ciências da Comunicação, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Diretor de Projetos da Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Secretário da Compolítica – Associação Brasileira de Pesquisadores(as) em Comunicação e Política.

Leia mais sobre o tema no texto a seguir: “Lei de Acesso à Informação: princípios e combate ao racismo