O artigo é uma transcrição adaptada de parte da aula “Lei de Acesso à Informação, Desigualdades Digitais e de Raça” do prof. Paulo Victor Melo para o Ciclo Formativo – Antirracismo e Políticas na Inteligência Artificial e TICs.
A pandemia de Covid foi um caso emblemático da negação sistemática da produção de dados. A negação de dados sobre contaminações e mortes pelo coronavírus, por exemplo, em territórios indígenas e quilombolas, foi parte fundamental da política de morte da gestão anterior do governo federal.
Não à toa, a APIB, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, e a CONAQ, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, desenvolveram iniciativas que tinham como eixo fundamental, justamente, a produção de dados, como o Quilombo Sem Covid-19, uma iniciativa muito interessante no sentido de evidenciar e, ao mesmo tempo, denunciar, a situação do coronavírus nos territórios quilombolas.
Em colaboração com a prof. Ivonete Lopes, publicamos a pesquisa “Acesso à informação pública, raça e gênero: uma mirada crítica sobre dados da covid-19 no Brasil“, no livro Dez anos da Lei de Acesso à Informação: limites, perspectivas e desafios.
Nesse levantamento, iniciamos por uma pesquisa nos boletins epidemiológicos e depois fomos fazer um trabalho, mais minucioso, a partir de dados fornecidos pelos próprios governos. Na pesquisa, nos debruçamos na interface entre o direito de acesso à informação pública e o direito à informação em saúde, ao problematizar sobre a produção/publicização dos dados desagregados (gênero e raça) em relação à pandemia, e buscamos apresentar uma mirada crítica sobre esta problemática no contexto da realidade brasileira, a partir de uma questão-guia: de que modo os governos estaduais e distrital do Brasil têm incluído os marcadores de raça e gênero em suas comunicações sobre a pandemia de covid-19?
Primeiro, nós formulamos um questionário com 18 perguntas, divididas em três blocos. No primeiro bloco, dados relacionados às contaminações por COVID-19 e marcadores de raça e gênero. O segundo bloco de perguntas era sobre dados relacionados a óbitos por COVID-19 e esses mesmos marcadores. E o terceiro bloco incluía perguntas sobre a existência de normativas ou políticas que orientem a coleta, registro e divulgação desses dados desagregados.
Formulado o questionário, nos dias 8 e 9 de fevereiro de 2022, nós enviamos, via páginas e portais de transparência, no âmbito da LAI, aos governos dos 26 estados e do Distrito Federal. Os primeiros apontamentos dizem respeito aos próprios desafios metodológicos.
Enfrentamos desafios já ao fazer as solicitações. O primeiro é que nós identificamos uma variação das informações obrigatórias para o cadastro da pessoa que faz a solicitação. Em alguns casos, por exemplo, eram solicitados apenas nome completo, e-mail e CPF. Era o básico, digamos, das informações sobre os requerentes. Mas, em alguns casos, era preciso incluir dados, por exemplo, como telefone e endereço completo. Se não fosse incluído telefone e endereço completo, não era possível, por exemplo, fazer a solicitação das informações. Apenas dois portais, o de Goiás e o do Amapá, disponibilizavam campo raça/cor para a identificação da pessoa solicitante. Esse é um dado que me parece importante de constar, porque hoje nós não conseguimos saber a composição racial das pessoas que fazem uso da Lei de Acesso à Informação. Não há esse campo como obrigatório, apenas nos portais de Goiás e do Amapá. O portal do Amapá incluía também a possibilidade de inserção do nome social do requerente. Somente os estados da Paraíba, Rio Grande do Norte, do Ceará, do Piauí, do Maranhão, do Amazonas, do Acre e do Amapá, além de Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Roraima e Tocantins, que o acesso era feito pela plataforma do governo federal, permitiam o direcionamento da solicitação para uma secretaria específica.
Nessas solicitações que fizemos, o nosso interesse era de uma resposta pelas secretarias estaduais de saúde. Mas em metade das plataformas de informação pública dos estados não era possível já direcionar para uma secretaria. Qual foi um dos resultados disso? É que vários desses estados, por exemplo, não responderam no prazo estabelecido. E aí, uma hipótese nossa é de que, por um volume considerável de solicitações que não têm um filtro inicial de para qual secretaria aquele pedido é direcionado, atrasos nos pedidos são gerados.
Em sete estados, as plataformas limitam a quantidade de caracteres. Acabou que, naqueles blocos de perguntas que nós fizemos, nós precisamos, em diversos momentos, quebrar a solicitação em vários pedidos. No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, a limitação de caracteres é tamanha que nós precisamos fazer em 18 pedidos.
Alguns portais informavam que não recebiam novas solicitações, por exemplo, os portais do Mato Grosso do Sul e do Tocantins, e o portal do Piauí, nós tentamos, algumas vezes, e a solicitação não era processada, dava erro.
Depois de realizados os pedidos, uma nova série de desafios. O primeiro resultado foi que dois estados, a Bahia e o Rio de Janeiro, solicitaram a prorrogação do prazo. Cinco estados não deram resposta dentro do prazo até o fechamento do artigo. Oito estados fizeram indicação de sites para verificação das informações requeridas. O problema é que, quando nós íamos para esses sites, as informações não estavam facilmente acessíveis e, em geral, o que estava disponibilizado eram microdados que necessitavam ainda de tratamento. Ou seja, já uma outra barreira para pessoas que não possuem familiaridade com aplicação de variáveis, gráficos, tabelas.
Quatro estados responderam com situações que eu e a professora Ivonete chamamos de equívoco sobre a LAI. Eu vou aqui trazer alguns exemplos. Goiás e Sergipe responderam que o uso da LAI, aquele canal, aquela plataforma, não era o canal adequado para “entrevistas ou questionários de pesquisa”. E aí, lembro um dos princípios da LAI de que o requerente não precisa informar o fim da solicitação. E não há qualquer restrição, por exemplo, na LAI, para solicitação para fins acadêmicos. O Distrito Federal respondeu que não atenderia ao pedido, por exigir “trabalhos adicionais de análise, interpretação ou consolidação de dados e informações ou serviços de produção ou tratamento de dados que não sejam de competência do órgão ou entidade”. Além de ser um próprio equívoco, a resposta do Distrito Federal contraria a natureza da LAI, que prevê que as informações devem ser apresentadas de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão.
Apenas cinco estados forneceram respostas e informações detalhadas. Pernambuco, Minas Gerais, Rio Grande do Norte, Tocantins e São Paulo. Sendo que São Paulo, ainda que tenham sido detalhadas, as respostas foram, na verdade, imagens indicando onde e de que forma conseguir as informações. Bom, dentre esses cinco estados, um aspecto importante a mencionar foi a Lei nº 17.024, promulgada pela Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, que estabelecia que dados desagregados por raça, cor e gênero, na pandemia, deveriam ser produzidos obrigatoriamente pelo governo estadual. O estado de Tocantins também respondeu que a Secretaria de Estado da Saúde orientava os municípios para o preenchimento completo das fichas de notificação, solicitando, por exemplo, essas informações sobre cor e raça. O estado de Minas Gerais informou que a desagregação dos dados de contaminações e óbitos por raça e por gênero já consta nos sistemas oficiais que abrange esses indicadores, o que significa que esses dados, na verdade, devem ser coletados pelos estados. Enfim, foram alguns dos resultados que tivemos a partir desses pedidos.
Aqui temos o reforço da inegável importância da Lei de Acesso à Informação para a efetivação do direito de acesso à informação pública. Também o entendimento da Lei de Acesso à Informação como um instrumento fundamental para o levantamento de informações e dados que orientem a nossa formulação enquanto intelectuais, a nossa atuação política enquanto militantes e a nossa intervenção na sociedade junto ao Estado. Por outro lado, há ainda uma negligência do Estado brasileiro, no que diz respeito aos princípios da LAI, e os resultados desse trabalho apontam nessa direção. Essa negligência tem a ver, na verdade, com o começo do nosso papo nessa série, que é uma história de negação dos dados e informações de interesse público e também com a negação do racismo, a partir do momento em que dados sobre a questão racial são ocultados.
Foi com base nessas inquietações e nessa perspectiva que, junto com outras companheiras, eu coordenei uma pesquisa intitulada Territórios Livres, Tecnologias Livres, porque nós não temos dados oficiais, por exemplo, sobre os acessos de internet, tecnologias de informação e comunicação em territórios quilombolas ou em assentamentos rurais. Foi um projeto coordenado pelo Intervozes, pela CONAQ, que já mencionei aqui, pelo Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste, em que nós atuamos em 33 territórios, quilombolas e rurais, dos nove estados da região Nordeste, e em que as lideranças desses territórios, que nós chamamos de pesquisadoras ativistas, eram as responsáveis pelo levantamento das informações.
Aliás, não apenas pelo levantamento das informações, mas, sobretudo, pela metodologia de levantamento dessas informações. Então, eram essas lideranças, todas mulheres, à exceção de Nilson, lá do Piauí, que pensavam, a partir da realidade dos seus próprios territórios, quais eram as metodologias mais adequadas para levantar informações sobre aqueles territórios, no que diz respeito a internet e tecnologias digitais.
Essa ideia da competência transgressora dos contra-especialistas citada no texto anterior tem muito a ver com essa perspectiva, e me lembra muito um trechinho da música Beiradeiro, do Chico César, que eu particularmente gosto bastante, que é a ideia da “cigana analfabeta lendo a mão de Paulo Freire”.
Eu penso que é fundamental, repito, reivindicarmos a melhoria, reivindicarmos o aprofundamento da Lei de Acesso à Informação enquanto um mecanismo que efetiva a ideia de acesso à informação pública como um direito e, ao mesmo tempo, também, como uma competência transgressora mesmo, pensarmos, produzirmos, experimentarmos outras metodologias de levantamento de informações e dados para a luta por justiça racial.
Paulo Victor Melo é pesquisador do Instituto de Comunicação da Universidade Nova de Lisboa, professor do IADE/Universidade Europeia, no curso de Ciências da Comunicação, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Diretor de Projetos da Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Secretário da Compolítica – Associação Brasileira de Pesquisadores(as) em Comunicação e Política.
Reveja toda a série de textos baseada na aula Lei de Acesso à Informação, Desigualdades Digitais e de Raça: